Quem me conhece, sabe que eu não me sinto muito bem quando me veem como alguém que serve de exemplo para os outros, só pelo fato de ter uma síndrome rara e levar uma vida normal, como qualquer outro ser humano. Simplesmente a Síndrome de Moebius não resume quem eu sou, apenas é uma – importante – parte de mim. Sou mais que um rosto paralisado. Sou mais do que uma dicção peculiar. Sempre gosto de frisar isso. Mas é fato de que nós, todos os dias, nos deparamos com barreiras e que precisamos vencê-las. Certamente vocês já derrubaram vários obstáculos ao longo dos anos. Eu também. Somos, vocês e eu, exemplos de superação, querendo ou não. E é disso que quero falar hoje, sobre uma superação minha, uma que eu acho que vale a pena compartilhar. Houve um episódio que marcou muito negativamente a minha vida. Tal acontecimento se deu na escola, mais precisamente numa apresentação de seminário no segundo ano do Ensino Médio. Eu sempre tive receio de apresentar com medo de piadinhas e risos dos que assistiam. No entanto, quase sempre tive a sorte de ter colegas de turma que me aceitaram e me respeitaram do jeitinho único que sou.
Quase sempre. Lembro-me como se fosse hoje, quando estava apresentando um trabalho de Filosofia, salvo engano, quando ouvi uma pessoa dizer, sem nenhuma gentileza muito menos empatia, com sorriso de escárnio, “Ai! Alguém traduz aí? Cadê a tradução simultânea?”. Parei, fiquei sem chão e não consegui dizer nada. A única coisa que consegui foi entregar a minha parte a uma colega de equipe e dizer que não mais apresentaria. Aparentemente, só eu ouvi, porque a colega não entendeu porque entreguei a minha parte a ela, mas, mesmo assim, finalizou a apresentação. Depois que acabou, a sala virou um pandemônio, porque os colegas souberam do que a pessoa havia dito comigo e todos saíram em minha defesa. Ao ouvir todo aquele estardalhaço, eu corri, corri pra bem longe da sala e fui chorar no banheiro. Estava arrasada. Tudo bem não entendermos o outro. Não entender algo que o outro diz é normal, até mesmo para quem tem uma dicção considerada perfeita. Mas o que a tal pessoa fez comigo foi um tanto cruel. Ela me desestabilizou totalmente e fez com que eu me sentisse uma espécie de alienígena caída, por acidente, na Terra. Após isso, eu não apresentei mais trabalhos, mesmo com todos (colegas de classe e professores) falando pra que eu apresentasse, que eles me entendiam, que eu não poderia me deixar abater por pessoas sem noção. Porém, eu não conseguia. Passei a ter pânico de apresentações de trabalhos. Perdi pontos por só entregar trabalhos escritos, sem a parte do seminário. Mas não consegui superar aquilo.
Quando terminei o Ensino Médio, entrei em crise, porque eu queria ingressar no ensino superior, mas todos falavam que na universidade a cobrança era alta e havia MUITOS seminários. Ouvi “seminário”, travei. Me sabotei de todas as formas para não entrar no Ensino Superior. Eu não conseguia superar o fato de que eu precisava lidar com o público. Eu não conseguia vencer o trauma do ensino médio. Eu não conseguia esquecer a imagem daquela pessoa, sorrindo com escárnio, de mim.
Finalmente, consegui me forçar a fazer ENEM e, depois de cinco anos de sabotagem comigo mesma, entrei no curso de Biblioteconomia da UFAL. Foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu consegui entrar, mas confesso que com o coração na mão, com muito medo do que aconteceria a partir de então. E só me aconteceu boas coisas, PARA A MINHAAAAA ALEGRIAAAA e surpresa. Já no segundo semestre, entrei num projeto de iniciação científica (PIBIC). Ganhei o coraçãozinho da minha turma (2013.1) e, finalmente, fui perdendo o medo de falar, de me posicionar, de estar na linha de frente.
Então, nesse semestre, eu me matriculei numa disciplina eletiva chamada Seminários de Integração em Biblioteconomia e Ciência da Informação achando que era eletiva do sexto ou do sétimo. Qual não foi a minha surpresa em chegar lá e me deparar com uma turma totalmente desconhecida. Momento de pânico. “Onde estou? Quem são essas pessoas?”. Eu caí de paraquedas no terceiro período. Não conheço ninguém (com exceção de umas novas colegas de turma muito bacanas que já foram gentis). Como o nome da disciplina denuncia, é uma disciplina de SEMINÁRIOS. Imagina a dor no coração que eu senti hoje quando o professor disse “Juntem-se em duplas ou trios, elaborem suas falas sobre texto x, que daqui a 25 minutos faremos um seminário.”. Pensei “E agora? Será que alguém vai rir? Será que alguém vai pedir tradução simultânea? Será que alguém vai ser cruel comigo? Será que vou reviver aquela cena lá do ensino médio?”. Mantive o controle emocional, elaborei minha fala e encarei aquelas pessoas que não conheço e que não me conhecem. Espantosamente, eu estava muito calma, muito tranquila comigo mesma. Falei tudo o que eu precisava falar. Terminei. Ninguém riu. Ninguém agiu de modo ofensivo. Senti uma paz enorme. Mesmo que alguém tivesse rido, mesmo que alguém tivesse sido cruel, eu percebi que nada nem ninguém conseguirá mais me abalar. Não em relação a apresentação de seminários.
Eu superei o trauma do ensino médio. Eu, verdadeiramente, não sinto mais vontade de me esconder, de me isolar, de me deixar à margem. Doa a quem dor, custe o que custar, eu existo. Eu estou aqui e não vou mais me sabotar. Não vou mais me anular. Não vou mais deixar meus sonhos na gaveta por medo de encarar o mundo, que por muitas vezes é cruel e impiedoso com toda e qualquer pessoa denominada “diferente”. E o que eu quero dizer, para finalizar, é isso: nunca deixem que lhe magoem a ponto de vocês desistirem de seus sonhos, nem que sejam por cinco minutos, cinco meses ou cinco anos. Mesmo que o mundo seja impiedoso e cruel, não desistam de vocês mesmos. Vocês não precisam de permissão de ninguém para serem quem são. Sejam gentis, mas saibam batalhar por seus direitos e por seus lugares ao sol. Vocês não precisam de aval de ninguém para serem felizes. Lembrem-se disso, sonhem muito, trabalhem ainda mais e ganhem o mundo. A vida é bela, sobretudo quando sabemos extrair o melhor de tudo que vivemos.
Com amor,
Erica Ferro
21/07/2016